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HISTÓRIA OCULTA

Folha de São Paulo;  São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003 

Apesar de apelos, presidente não revogou decreto inconstitucional de FHC que ampliou restrição a papéis

Lula mantém sigilo "eterno" de documentos

MÁRIO MAGALHÃES DA SUCURSAL DO RIO


É inconstitucional o decreto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que ampliou até o infinito o tempo que um documento de órgão público pode permanecer em sigilo.

A despeito de apelos recebidos desde janeiro, quanto tomou posse, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva não revogou o decreto assinado por seu antecessor.

A Lei de Arquivos (número 8.159, de 91) fixa em 60 anos o prazo máximo de restrição a ""documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado". O decreto 4.553, editado por FHC na última semana do seu governo, amplia os limites de todas as categorias (reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto), criando o prazo de 50 anos prorrogáveis até a eternidade -portanto acima do que a lei prevê.

Decretos como o de dezembro são atos da administração que regulamentam leis. São de autoria do presidente da República, de governadores ou de prefeitos.

Não podem exceder as leis que estão a regulamentar, contradizê-las, como faz o decreto de 27 de dezembro.

No dia 2 de janeiro, o diretor-geral do Arquivo Nacional e presidente do Conarq (Conselho Nacional de Arquivos), Jaime Antunes, escreveu em ofício que ""o decreto ultrapassa os limites impostos na referida lei".

A correspondência foi enviada aos conselheiros e à Casa Civil da Presidência, à qual o Arquivo Nacional se subordina.


Apelos

A Casa Civil recebeu outras mensagens de instituições arquivísticas e de pesquisa pedindo a revogação do decreto de FHC.

A deputada Alice Portugal (PC do B-BA) apresentou projeto de decreto legislativo que susta o decreto de Fernando Henrique "por exorbitar" a lei de 1991.

"[O decreto] evidentemente está contrariando a lei", afirma o constitucionalista Fábio Comparato. Ele aponta outro problema: "A República é um regime em que as coisas que estão ligadas diretamente ao povo não podem ser apropriadas por ninguém. No caso de documentos considerados importantes para a preservação da segurança do Estado, esse sigilo só pode ser mantido por um tempo adequado".


"Aberração"

Na sua opinião, o prazo de 60 anos era exagerado. O de 50 anos renováveis para sempre, uma "aberração".

O princípio de que "não pode haver decreto que altere a lei" é "elementar", afirma outro constitucionalista, Celso Bastos. Segundo ele, o decreto de dezembro "se desmandou" (excedeu-se). Bastos também qualifica o decreto como inconstitucional.

O decreto de FHC na reta final de governo dificulta o acesso a toda documentação restrita do Estado, inclusive dos oito anos da sua gestão. A lei 8.159 definiu os contornos da política de salvaguarda de papéis sigilosos na administração pública.

Estipulou o prazo de até 30 anos para sigilo de documentos referentes à sociedade e ao Estado, prorrogável no máximo por mais 30 anos. O veto a acesso a papéis sigilosos sobre a honra e a imagem das pessoas limita-se a cem anos.

O decreto 2.134, de 1997, de autoria do próprio FHC, regulamentou a lei de 1991 com quatro classificações. Determinou o prazo de segredo de cada uma, que poderia ser renovado pelo mesmo período só uma vez: documentos ultra-secretos (até 30 anos de sigilo, com renovação chegaria a 60 anos); secretos (20 anos, máximo de 40); confidenciais (dez anos, máximo de 20); reservados (cinco anos, máximo de dez).

Em 2002, os limites aumentaram, por ordem, para 50 anos (prorrogáveis indefinidamente), 30 anos (até 60), 20 anos (até 40) e dez anos (até 20).

As mudanças nos prazos não foram as únicas. O decreto de 1997 estipulava que a classificação de ultra-secreto era restrita aos presidentes da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. O novo decreto vetou esse poder aos chefes do Legislativo e do Judiciário e estendeu-o aos ministros de Estado e aos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.


Exemplos

A iniciativa de Fernando Henrique até agora mantida por Lula dificulta que se conheça plenamente a história do país. Documentos secretos sobre o golpe de 1964, mesmo com o prazo máximo prorrogado, poderiam ser liberados no ano que vem, 40 anos após sua produção. Agora podem ser escondidos até 2024.

O maior prejuízo é para a reconstituição da trajetória do regime militar (1964-85). Antes, as Forças Armadas diziam não existir mais certos arquivos, como o do CIE (Centro de Informações do Exército) -na verdade, o arquivo existe e serviu até para a elaboração de um livro (nunca publicado) após o fim da ditadura. Agora, o Exército poderia dizer que o arquivo existe, mas o decreto de FHC lhe faculta sigilo.

Também se atrasa o acesso a papéis dos anos Fernando Henrique Cardoso, bem como os de Lula, caso o atual presidente não revogue o decreto de dezembro.

Desde o início dos anos 80, os arquivos e as instituições acadêmicas participaram das discussões sobre a legislação de sigilo de documentos públicos.

Na década de 90, o Conarq fez a minuta de quase todos os decretos regulamentadores, foi consultado sobre todos. Menos sobre o de 27 de dezembro.

"Os conselheiros foram pegos de surpresa", afirma Célia Costa, representante do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas) no Conarq.

"Com o decreto, os interesses do Estado acabam por ser preservados eternamente, sem que haja nenhuma possibilidade de julgamento", diz a professora de história contemporânea na USP Maria Aparecida de Aquino. "É completamente antidemocrático."



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